Uso público nos Parques Nacionais é um direito civil

((o))eco - http://www.oeco.org.br/ - 09/02/2015
A publicação no ((o))eco da matéria a respeito da suspensão das portarias de ordenamento da visitação nos Parques Nacionais de São Joaquim e Anavilhanas me fez refletir a respeito de um direito que ainda tem sido pouco respeitado no Brasil: o direito ao uso recreativo das unidades de conservação (UC).

O artigo 225 da Constituição Federal diz: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações".

O objetivo principal da criação do conceito de parques nacionais no final do século XIX nos Estados Unidos era a preservação de áreas em estado natural para o usufruto dos cidadãos (os conceitos de ecologia e serviços ambientais viriam bem mais na frente). No Brasil, os primeiros parques foram criados pelo mesmo motivo: Itatiaia, Iguaçu e Serra dos Órgãos, por exemplo. Pelo mundo afora, a maioria dos países trabalhou bem essa ideia e vêm oferecendo boas opções de visitação. Nesse assunto, não se fala apenas em países desenvolvidos como EUA, Canadá ou Austrália, mas também países em desenvolvimento como Argentina, Costa Rica, Peru e África do Sul oferecem visitação de qualidade nos seus parques nacionais. Então porque o Brasil ainda não conseguiu estruturar um sistema federal razoável, que possa oferecer este direito constitucional de USO COMUM DO POVO das nossas maiores belezas naturais? A Lei pode ter muitas interpretações, mas o fato é que hoje em dia a maioria dos parques nacionais e outras UC não estão acessíveis para a população como um todo.

Muitas personalidades importantes já falaram nesse assunto aqui em ((o))eco. Suzana Pádua já escrevia sobre isso em 2005, na época em que Anavilhanas ainda era Estação Ecológica - "Abrir ou não as reservas?". Maria Teresa Jorge Pádua também têm alguns artigos publicados a respeito. Na matéria "Como os peruanos estão goleando o Brasil no ecoturismo", ela enfatiza: "No passado, tentou-se dotar de infraestrutura alguns Parques Nacionais na Amazônia. Construíram-se elefantes brancos que sucumbiram à falta de manutenção. O setor privado não investe, pois os Parques e demais Unidades de Conservação não estão preparados para a visitação pública. (...) Tudo para na exigência de planos de manejo sofisticados e instalações luxuosas, caras de construir." Outros grandes defensores do conceito com excelentes matérias no ((o))eco são Pedro Cunha Menezes "Conhecer para Preservar: um pouco da história (partes 1 e 2)" e André Ilha: "Visitação é essencial nos parques estaduais do Rio de Janeiro".

Assim eu me pergunto: se tantas pessoas com reconhecido conhecimento no assunto são a favor de uma visitação mais abrangente; se mesmo dentro do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de uma maneira geral, quase todos são a favor também; se o SNUC prevê o uso educativo, turístico e recreativo das nossas UC's; então porque até hoje não se conseguiu emplacar uma sistema de uso público federal mais abrangente?

Uma das razões para tal situação tem sido a falta de interesse da população. O povo, de maneira geral, ainda não entendeu que o uso do meio ambiente equilibrado é SEU DIREITO. Ainda não entendeu que se pode e se deve exigir esse direito. Entretanto, na região do Parque Nacional de São Joaquim algo diferente está acontecendo, como veremos mais à frente.

Este artigo não é uma defesa ao uso desordenado e destrutivo dos nossos ambientes naturais. Ao contrário, as UC's devem sim ter planos de manejo e ordenamento. Entretanto, como se justifica a suspensão de um uso ordenado, com controle e monitoramento como o que vinha acontecendo em São Joaquim, pela falta de plano de manejo, se a unidade tem 53 anos e ainda não o fez? E qual a real necessidade de se suspender as portarias agora, pois como previsto, serão substituídas quando da elaboração dos planos de manejo?

A suspensão do uso público monitorado nas trilhas dos parques será ainda uma perda de informações reais importantíssimas para o desenvolvimento dos planos de manejo. Mais do que isso, a decisão compromete todo o trabalho de interlocução feito, ao longo de anos, pelas equipes nas unidades. Situações como essa já aconteceram antes e grupos que apoiavam ou trabalhavam com a unidade, de um dia para noite, se viram impossibilitados de entrar nas UC's. Populações que faziam uso recreativo de áreas naturais e que apoiaram a criação de parques, de uma hora para outra se tornaram "foras-da-lei" e se viram proibidos de continuar suas atividades.

Entretanto, a reação incomum da comunidade do entorno do Parque Nacional de São Joaquim vale uma avaliação detalhada. O parque vinha desenvolvendo um trabalho de parceria com a comunidade local. A Semana de Ecoturismo da Serra Catarinense chegou em 2014 na sua quarta edição, oferecendo caminhadas, cicloturismo e observação de aves, entre outras atividades. Um trabalho que envolvia a população, setores econômicos, autoridades e instituições públicas de diversos municípios. Além disso, o parque vinha cadastrando e capacitando condutores de visitantes para atuar de forma responsável dentro da UC. Ano passado já eram mais de 30 profissionais operando regularmente. Todo esse trabalho trouxe resultados concretos para a UC. Hoje ela é a quarta mais visitada do Brasil e tem um trade turístico organizado ao seu redor. Mais importante, a população do entorno valoriza o parque e as autoridades locais reconhecem seu valor para o desenvolvimento da região.

Em defesa do parque aberto

Assim, a tentativa de cancelamento da portaria e suspensão do usufruto das trilhas chamou a atenção da população. A decisão encontrou oposição da comunidade local, que conhece, valoriza e preserva a UC. Usuários do Parque e operadores de turismo locais se organizaram para resistir ao fechamento e criaram uma comunidade no Facebook "Parque Nacional de São Joaquim - conhecer para preservar". A comunidade já tem mais de 3 mil curtidas e continua trabalhando para reverter a decisão do ICMBio. Eles até criaram uma petição AVAAZ para ser entregue a Ministra Izabella Teixeira. Para isso, a petição pretende coletar 5 mil assinaturas. Na mesma linha de atuação, o Instituto Serrano de Ecoturismo e Conservação da Natureza, de Urubici, onde fica a sede do parque, está promoveu uma assembleia nesta segunda-feira (09), na Câmara dos Vereadores da cidade para elaborar uma carta pedindo a revogação da suspensão da Portaria 85/2012. A carta será entregue ao Presidente do ICMBio no dia 11.

Nos EUA, onde se originou o conceito de parque nacional, muitos casos de movimentos sociais aconteceram. O Parque Nacional de Everglades na Flórida é um bom exemplo também. Lá a comunidade se organizou, angariou fundos e lutou pela criação do parque até sua abertura à visitação. Entretanto, no país norte americano, além dos movimentos sociais e políticos, usuários e associações ambientais também entram na Justiça contra o Serviço de Parques e o Serviço Florestal Americano, quando não concordam com o que está acontecendo. Em um caso atual, um grupo de visitantes ganhou na justiça o direito de não pagar entrada na Floresta Nacional de Cleveland, quando utilizando áreas que não recebem manutenção do Serviço Florestal Americano.

Em outro caso, um grupo de ONGs de Nova Jersey e Pensilvânia entrou na Justiça contra a decisão do Serviço de Parques Americano de autorizar uma linha de transmissão que iria atravessar três UC's, incluindo a Appalachian Trail. Além das preocupações relativas aos impactos ambientais, o grupo também alegava o comprometimento da experiência do visitante.

Direitos civis são tratados com seriedade nos EUA e inclusive as instituições ambientais passaram a desenvolver uma maior interlocução com a comunidade e um trabalho mais transparente, após terem que ir à Corte algumas vezes para responder por atos indevidamente realizados.

Hoje a sociedade brasileira já começa a demonstrar que percebe a importância do acesso e uso das UC's. Demonstração disso é a criação do Instituto Semeia, que vem trabalhando com esse enfoque na articulação entre setor público e privado na área ambiental, com forte apoio à implementação do uso público nos parques. Outro caso que merece reconhecimento é o Decreto n. 42.483, de 27 de maio de 2010, do Rio de Janeiro, que "estabelece diretrizes para o uso público nos parques estaduais administrados pelo INEA". O Rio de Janeiro fez amplo levantamento para a elaboração desse decreto, que hoje respalda o órgão e seus gestores para que ajam de forma a compatibilizar o uso público com a preservação dos recursos naturais. Se o caso dos parques de Anavilhanas e São Joaquim estivesse ocorrendo no Rio de Janeiro, já estariam respaldados pelo Art. 4o, § 1o: " Não havendo plano de manejo deverá ser elaborado um plano provisório de uso público, visando ao ordenamento e à mitigação dos impactos causados pela visitação". Entretanto, na esfera federal, apesar do avanços no ICMBio, ainda não dispomos de tal ordenamento jurídico e os casos supracitados ainda ficam sujeitos a interpretação. Pro outro lado, a reação da comunidade ao redor de São Joaquim chama a atenção. Demonstra que quando a UC faz um bom trabalho e tem diálogo com a comunidade, permitindo o acesso às áreas, essa população aprende a gostar e valorizar a unidade. O povo se conscientiza de sua importância tanto em nível pessoal quanto social e econômico. São Joaquim é um caso concreto onde os cidadãos se levantam para defender o direito de uso comum do povo, que é um dos objetivos de criação dos parques. Espero que sua luta não seja em vão e que se forme um diálogo entre a comunidade e as autoridades, pois acredito que cada um na sua forma de entender quer o melhor para nossas queridas áreas protegidas.



http://www.oeco.org.br/convidados/28912-uso-publico-nos-parques-nacionais-e-um-direito-civil
UC:Parque

Unidades de Conservação relacionadas

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