Natureza ameaçada

O Globo, Sociedade, p. 31 - 28/03/2015
Natureza ameaçada
Governo corta quase pela metade número de brigadistas de incêndio em parques nacionais

-SÃO PAULO- No seriado "House of cards", diante de restrições orçamentárias, o fictício presidente americano Frank Underwood corta recursos de combate a desastres ambientais e os realoca para tentar aquecer a economia. Pouco tempo depois, pressionado pelo risco de uma tragédia climática iminente, ele acaba forçado a voltar atrás. No Brasil, algo parecido com o roteiro de televisão está acontecendo. O Ministério do Meio Ambiente decidiu cortar quase pela metade o número de brigadistas de incêndio em parques nacionais. Documentos internos do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, e obtidos com exclusividade pelo GLOBO, mostram que, se em 2014 existiam 1.589 brigadistas atuando em 91 unidades de conservação, em 2015 serão apenas 987 brigadistas em 62 unidades.
O próprio documento, assinado pelo coordenador de emergências ambientais Christian Niel Berlinck, explica que os cortes são resultado do ajuste fiscal que o governo implementou e que já atingiu outras áreas, como as universidades federais (que tiveram o início das aulas atrasado) e o IBGE, que cancelou a contagem populacional em 2016.
Agora, a justificativa se repete: "Frente às previsões de fortes restrições orçamentárias no governo federal, o ICMBio enfrenta um momento de readequação de ações", justifica-se o gestor na carta, e completa: "Assim, foram reduzidos tanto o efetivo de brigadistas quanto as Unidades de Conservação Federais autorizadas a contratar brigadas". Ainda no mesmo documento, Berlinck revela a gravidade da situação: "O ICMBio está empenhado na reversão do quadro orçamentário atual, e caso tenhamos êxito, as alterações nos contratos de brigada serão reavaliadas".
'ABSOLUTA IRRESPONSABILIDADE'
Os cortes são tão severos que no Parque Cabo Orange (AP), por exemplo, vai haver um brigadista para cada 44 mil hectares (cada hectare equivale a dez mil metros quadrados). No Parque das Nascentes do Parnaíba, no Piauí, há um brigadista para cada 34 mil hectares. Não há uma medida ideal para esta proporção, porque é preciso levar em conta a vegetação, o clima e as ilhas de calor em um parque, mas uma relação razoável seria um brigadista para cada 110 hectares. Segundo o ambientalista Fábio Olmos, ex-gestor do Parque de Ilha Bela, em São Paulo, o brigadista precisaria ser um "semideus" para proteger uma área tão grande:
- Agora a situação do governo Dilma vai pegar fogo, literalmente - diz Olmos. - Essa ação é uma absoluta irresponsabilidade.
Os cortes não pouparam sequer áreas consideradas patrimônio natural da humanidade, como o Parque das Emas, em Goiás. Maior reserva de cerrado do Brasil, a área tem um histórico de queimadas. Em 2010, 90% do parque foram consumidos pelas chamas.
O Parque Nacional de Itatiaia, a reserva mais antiga do Brasil, criada por Getúlio Vargas, também está em risco. Entre 1937 e 2008, sofreu com 323 incêndios. Só no ano passado, foram dois.
- A situação é grave porque os cortes estão acontecendo em áreas prioritárias, como o combate a incêndios, em áreas que historicamente sofrem com as queimadas, como o Parque de Brasília - afirma Ana Luísa da Riva, ex-gestora de parques e diretora-executiva do Semeia, organização especializada nesses patrimônios naturais.
Gestores de parques ouvidos pelo GLOBO, que se recusaram a dar o nome por medo de perseguição, se disseram extremamente preocupados com a situação que terão de enfrentar:
- Nos Estados Unidos, quando houve corte orçamentário, o (presidente Barack) Obama mandou fechar o parque para o público, cortou em vários setores, mas não em combate a incêndio - disse um deles, com experiência internacional.
O episódio a que o gestor se refere aconteceu em 2013, quando, diante de um impasse no Congresso, que não aprovava o orçamento do governo, o presidente Barack Obama optou por impedir a entrada do público em mais de 400 pontos de turismo do país para não gastar com funcionários para orientar os visitantes.
Outro administrador, que gere uma área de nascentes na região Sudeste, declarou que a combinação de diminuição de efetivo e de tempo de contrato dos brigadistas com a expectativa de uma estiagem longa e severa pode resultar em incêndios de grandes proporções, para os quais os parques não estariam preparados para responder.
FISCALIZAÇÃO DE FACHADA
No total, o governo federal precisa zelar por 75 milhões de hectares de unidades de conservação. A área é sabidamente grande demais para a capacidade do governo de vigiá-las. Um estudo feito pelo Programa de Meio Ambiente para as Nações Unidas, em 2011, mostrou que, enquanto na Argentina um funcionário era responsável por 2.400 hectares de parque, no Brasil cada funcionário cuidava de 18.600 hectares.
- O número anterior de funcionários nos parques já não era ideal, agora o que teremos é uma fiscalização de fachada. O monitoramento por satélites é incapaz de prevenir e combater incêndios da mesma forma que o fiscal in loco - afirma o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Alberto Bocuhy.
Embora seja considerada uma medida grave e preocupante, especialistas não consideraram surpreendente o corte em brigadas de incêndio.
- O meio ambiente nunca foi prioridade no governo Dilma. A presidente só criou unidades de conservação às vésperas da reeleição e interrompeu a demarcação de terras indígenas. Em seu primeiro governo, houve uma série de retrocessos. No segundo mandato, já sabíamos que viriam mais cortes no meio ambiente - afirmou Carlos Rittl, do Observatório do Clima.
Em resposta aos questionamentos do GLOBO, o ICMBio informou, por meio de nota, que, como todos os setores do governo, reduziu em 33% o orçamento previsto para as áreas antes da aprovação do orçamento de 2015. "Apesar de a perspectiva ser positiva com relação ao orçamento para as atividades de proteção do ICMBio, não é recomendável realizar despesas sem confirmação prévia do orçamento. Para evitar a possibilidade de falta de recursos essenciais nas épocas mais críticas do trabalho de prevenção e combate a incêndios, foram feitos ajustes na proposta de trabalho inicial de 2015, que sofrerá alterações positivas após a aprovação do orçamento", diz a nota do órgão, que afirma ainda que "o ICMBio mantém monitoramento permanente da situação de risco de incêndios nas unidades de conservação e trabalha para ter condições de reagir de forma consistente a qualquer situação não prevista e alterações do quadro climático. O ICMBio está também reforçando suas parcerias dentro dos estados e municípios para fazer frente a eventualidades que surjam".

O Globo, 28/03/2015, Sociedade, p. 31
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