Índios e Parques

OESP - 05/09/2003
Os direitos dos indígenas devem ser plenamente reconhecidos e respeitados, mas também necessita sê-lo a riqueza biológica do Brasil. Não se pode, em nome de um certo grau de culpa coletiva, assumido pelas gerações presentes, em face dos abusos inaceitáveis do passado, conceder privilégios descabidos e tolerar atos ilegais, em detrimento do patrimônio natural da Nação.

Desde o início da colonização portuguesa, os povos indígenas existentes na vasta porção do continente sul-americano, que hoje constitui o Brasil, foram vítimas de agressões, usurpação de terras, escravidão e, mais recentemente, freqüente e indesculpável descaso. Sem dúvida, em épocas passadas, tais tratamentos indignos para seres humanos eram a conduta usual dos colonizadores, tanto nas Américas, quanto na África, Ásia e Austrália, e em todas essas regiões fatos profundamente lamentáveis, que hoje nos horrorizam, constam fartamente dos registros históricos. Em alguns casos, populações inteiras foram deliberadamente exterminadas.

No decorrer dos séculos, aos poucos, os direitos dos povos indígenas foram sendo mundialmente reconhecidos e suas ricas e diversificadas culturas passaram a ser respeitadas, estudadas e valorizadas, embora possam ainda subsistir eventuais condutas injustas das sociedades, que se intitulam civilizadas. Via de regra, porém, desde há algum tempo, o problema na verdade se inverteu, em decorrência de um certo grau de culpa coletiva assumido pelas gerações presentes, em face dos abusos inaceitáveis do passado. Hoje, são fatos comuns no mundo a concessão de privilégios descabidos a populações indígenas e a tolerância a atos ilegais, muitas vezes, pelo menos no caso brasileiro, em detrimento do patrimônio natural da Nação.

A Constituição Federal, em seu artigo 231, reconhece aos índios "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" e determina que "as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usofruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos neles existentes". A rigor, uma interpretação tendenciosa do texto constitucional permitiria admitir-se que qualquer área do território nacional poderia ser considerada terra indígena, posto que até o Descobrimento os povos autóctones o ocupavam indistintamente.

A totalidade das terras destinadas hoje às Reservas Indígenas já abarca uma área gigantesca, superior a 10% do território nacional, cuja extensão total corresponde a cerca de 3,4 vezes a superfície do estado de São Paulo. Mesmo assim, repetem-se com alarmante e crescente freqüência as invasões de áreas naturais legalmente destinadas à preservação permanente da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País, para as quais é previsto que serão "a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção", conforme estabelecido no artigo 225 da Constituição Federal e regulamentado pela Lei no. 9.985, de 2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Os parques nacionais e estaduais têm sido especialmente vítimas desses desmandos inaceitáveis, cometidos com o incentivo de determinadas organizações não governamentais (ONGs), o apoio da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e a repetida complacência dos demais órgãos governamentais responsáveis.

Dentre múltiplos exemplos, que poderiam ser mencionados, destacamos o Parque Nacional de Monte Pascoal, a maior área remanescente da Mata Atlântica no Nordeste, há anos ocupada e degradada pelos índios Pataxó; o Parque Nacional do Araguaia, na ilha do Bananal, criado inicialmente com cerca de 2 milhões de hectares e sucessivamente reduzido para atender a reivindicações dos indígenas; o Parque Nacional do Descobrimento, com extraordinária riqueza biológica, criado no sul da Bahia há aproximadamente dois anos e recentemente invadido; o Parque Nacional de Superagüi, no litoral do Paraná, ocupado há anos, sem qualquer solução; e o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, em São Paulo, preciosidade ecológica em que coexistem diferentes tipos de ecossistemas da Mata Atlântica. Nestes dois últimos exemplos, os invasores sequer brasileiros são e, sim, índios Guarani que falam espanhol e são procedentes da Argentina.

As áreas naturais sob proteção integral totalizam extensão, que não atinge cinco por cento do território nacional, muito menos portanto do que as terras indígenas, e nelas reside a maior esperança de podermos preservar expressivas parcelas da biodiversidade brasileira, compromisso solene do País ao ratificar a Convenção da Diversidade Biológica. Elas são santuários ecológicos de valor inestimável, onde se abrigam os restos dos ecossistemas naturais da Nação. Protegê-las intransigentemente é um dever de todos nós.

Os direitos dos indígenas devem ser plenamente reconhecidos e respeitados, mas também necessita sê-lo a riqueza biológica do Brasil, hoje em continuado processo de empobrecimento, no qual se inclui a negligência com que o Poder Público encara a ocupação das nossas preciosas unidades de conservação por grupos esparsos da população indígena.

Ibsen de Gusmão Câmara (ibsengc@aol.com) é presidente da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação (Rede Pró-Ucs)
UC:Geral

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