Conservar para quê?

O ECO - 28/03/2008
Pelo menos uma vez por ano, tento dar um pulo ao Parque Nacional da Serra da Bocaina. Com cerca de 110 mil hectares, o Parque é a maior área de preservação integral de Mata Atlântica. Mas a Bocaina não é só tamanho. Seus campos de altitude, bosques de araucárias, encostas de floresta densa, cachoeiras e rios de águas límpidas são habitados por uma fauna bastante diversa que inclui gaviões, tucanos, monos carvoeiros, veados campeiros e até mesmo onças. Tudo isso fica a pouco mais de 100 quilômetros da cidade do Rio de Janeiro, na divisa com o Estado de São Paulo. Trata-se de um pequeno paraíso incrustado entre as duas maiores metrópoles do Brasil. Sem dúvida merece ser protegido.

Freqüento a Bocaina desde 1970, quanto tinha apenas seis anos de idade e, em todo esse tempo, jamais duvidei da pertinência da área ser um Parque Nacional (vide minha coluna "Bocaina em Retrospectiva", publicada aqui em O Eco em 23/01/2005). Naquela época, não havia estradas para o Vale do Rio Bonito, onde minha família normalmente passa suas temporadas bocainescas. Íamos de carro até a cidade histórica de São José do Barreiro, de lá pegávamos uma caminhonete Rural até a sede do Parque, onde transferíamos bagagens e passageiros para os lombos de uma tropa de mulas e cavalos. Daí em diante percorríamos mais três horas montados, cavalgando trechos das antigas trilhas que, até o Século XIX, faziam as vezes de estradas ligavando os centros auríferos de Minas Gerais e as fazendas cafeeiras do Vale do Paraíba aos portos de Paraty, Mambucaba e Angra dos Reis (vide minha coluna "Caminho do Ouro", publicada aqui em O Eco em 30/01/2005).

Valia a pena. A própria viagem já era um programa. Ver os vestígios da História do Brasil com H maiúsculo, atravessar o microclima de altitudes próximas aos 2.000 metros, ouvir o canto das arapongas, admirar as vistas desabridas, sentir o cheiro da terra que está sempre úmida, tomar banho pelado nas mil e uma cachoeiras desertas, tudo isso sempre me fez entender a necessidade da existência de Parques Nacionais. Como já disse acima, nunca precisei ler a Lei do SNUC para saber que um "Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a realização de pesquisas científicas e o desenvolvimento de atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo ecológico". Com exceção da parte que se refere às tais "pesquisas científicas" aprendi o resto por osmose.

Muito tempo depois, já adulto, vim a saber que as pesquisas mencionadas no SNUC visam, entre outras coisas, a desenvolver remédios que podem salvar vidas. Nesse sentido, a biodiversidade guardada nos nossos Parques e Reservas pode ser a chave para a cura de muitas doenças novas e antigas, como aids e alzheimer. Um bom exemplo prático disso pode ser visto em uma farmácia localizada nas fraldas da própria Bocaina.

Da última vez que lá fui, ao descer do Vale do Rio Bonito, sentia uma bruta dor de cabeça, mas estava sem aspirinas. Parei então na velha drogaria da cidade histórica de Bananal. A Pharmácia Popular, que tem a fama de ser a mais antiga em funcionamento contínuo no Brasil, foi aberta em 1830 pelo boticário francês Tournin Mosnier.

Todos os anos passo em frente à Antiga Pharmácia Imperial (o nome foi mudado em 1889, quando a República foi proclamada), mas fazia muito tempo que não a visitava. Encantei-me. O revestimento dos pisos é de ladrilho importado da França. Também europeus são os vidros e os potes de porcelana que armazenam os remédios. Alguns rótulos das ânforas de cristal são pintados em ouro. Há frascos do tempo da Colônia e instrumentos da época imperial. A madeira usada nos balcões e nas estantes é de pinho de Riga, trazida da Escandinávia. Paguei minhas aspirinas e recebi um troco retirado de uma caixa registradora de ferro dourado e ornamentado, fabricada há mais de 100 anos.

Enfeitiçado pela botica, deixei-me ficar ali proseando com Seu Plínio Graça, Prático de Farmácia, que herdou o negócio comprado pelo pai em 1822. Conversa vai, conversa vem, o boticário me conta que ainda é do tempo em que remédio não era "umas pílulas que vinham embaladas nessas caixinhas coloridas de hoje", mas era fabricado pelo próprio farmacêutico, segundo fórmulas que utilizavam plantas naturais. Ao perceber meu interesse crescente, acorreu aos fundos do seu estabelecimento e voltou com uma cópia do Formulário Chernoviz, uma bíblia farmacêutica que teve 19 edições ao longo de 83 anos (foi publicada pela primeira vez em 1841, no Rio de Janeiro, e teve sua última impressão em Paris, em 1924).

Folheei as 2.500 páginas do exemplar da Pharmácia Popular, publicado na década de 1850 na tipografia Laemmert no Rio de Janeiro. Nele o médico franco-polonês naturalizado brasileiro Pedro Luíz Napoleão Chenoviz lista os remédios e ungüentos preparados com "as plantas medicinais indígenas do Brasil,"a escolha das melhores fórmulas" e muitas informações úteis. Enquanto manuseava o Formulário, meus olhos refestelavam-se com as estantes bem arrumadas de Seu Plínio. Iam dos frascos aos bastonetes misturadores, das ânforas aos trituradores. A certa altura cerrei as pálpebras e imaginei o boticário escolhendo as plantas, cortando-as, amassando-as, transformando-as em pó, juntando-as a algum estrato natural, ministrando-o a algum doente, salvando vidas.

O processo de antanho era artesanal. Hoje essas mesmas plantas e estratos naturais são processados em laboratórios modernos com centrífugas, separadoras elétricas, temperatura controlada e balanças de precisão. As espécies da natureza que fornecem a matéria-prima dessas drogas salvadoras, contudo, continuam a vir de nossas matas e florestas. Algumas plantas cujas propriedades medicinais e terapêuticas já conhecemos até são cultivadas em escala comercial. O problema está na parte da flora que ainda não foi devidamente estudada mas que pode conter a chave para a cura de muitas doenças sem tratamento adequado, como o câncer e o mal de Parkinson. No ritmo que estamos devastando a natureza, em breve estas, se não forem extintas antes, só poderão ser encontradas em nossos Parques Nacionais e outras áreas protegidas.

Espero, sinceramente, que a mensagem que demorei tantos anos para aprender na Farmácia de Seu Plínio chegue mais rápido às outras pessoas que ainda não a captaram. Só assim poderemos todos entender, com a urgência que o tema pede, que o significado da palavra biodiversidade vai um pouco além de uma boa trilha, uma bela vista e um gostoso mergulho nas águas límpidas de uma cachoeira.
UC:Parque

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Serra da Bocaina
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.